Por Milton Nuevo de Campos Neto.
Sobre a
mentira, venho pensando em que medida ela é presente em nossas vidas,
especialmente no que se refere ao mal-estar. Porque mentimos? Ou melhor, talvez
a pergunta seria: o que queremos esconder?
Lembro-me
de uma cena da clínica. Uma analisanda chega à sessão retomando nosso encontro
anterior, o qual havia terminado quando ela chega a uma questão sobre um
ex-namorado: afinal, diante de muitos encontros com ele após o fim do
relacionamento e diante da alegria causada por tais encontros, quer estar
novamente com ele? Na ocasião, a moça insistia, contraditoriamente, que não!
Comparece,
então, para me dizer exatamente isso: “Eu pensei e, refletindo, cheguei à
conclusão de que eu te disse uma mentira. Não que eu estivesse mentindo pra
você, na verdade eu acho que mentia pra mim mesma. Então, te contei honestamente
uma mentira!” Sem exageros, juro que foi o que ouvi. Disse isso para que eu
soubesse que ela deseja retomar seu relacionamento.
E então, o
que pensar? Lembro, também, de outra anedota: em uma conversa com a equipe com
quem trabalho em São Bernardo, discutíamos alguns casos. Então, um colega
levanta a questão sobre um paciente que nitidamente havia mentido sobre estar
cumprindo os combinados para o tratamento, em outras palavras, estava mentindo
sobre ter aderido ao tratamento. O que fez com que o colega chegasse à
conclusão de que essa pessoa mentia pra ele. Ao passo que, imediatamente, uma
outra colega, que também é dada a essa tal de psicanálise, retificou: “Não, ele
mente para si mesmo”.
São muitos
os exemplos onde a mentira nos visita na prática clínica, mas isso não deveria
nos lançar à ilusão de que somos menos visitados pela verdade! “Sempre falo a
verdade” disse Lacan, certa vez. E essas experiências (além, claro, das minhas
próprias) com tais honestas mentiras, sempre me colocam a questão da verdade.
Assim a histeria o fez com a psiquiatria no século XIX, assim continua fazendo
até hoje com quem quer que se coloque a tratá-la.
Gostaria
de falar um pouco sobre como ficamos cegos ao tentar separar a mentira da
verdade. É preciso que procuremos pela verdade NA mentira, é a conclusão que
tiro da cena do documentário de Slavoj Zizek “O Guia Pervertido do Cinema” – no
qual ele nos guia por alguns filmes –, cena em que ele faz uma leitura do
momento em que Morpheu oferece a Neo as duas pílulas no primeiro filme da
trilogia Matrix (http://www.youtube.com/watch?v=Pmi-cFu5Plw). Para ser
mais claro, podemos pensar na mentira como sendo o sintoma. Assim se apresenta
o sintoma: como uma mentira. Mentira que o sujeito constrói para dizer uma
verdade, mentira que se faz pela via da metáfora. Por isso, quando alguém conta
uma mentira ao analista (não apenas a ele), o está fazendo de forma honesta.
Mente, mas não percebe mentir – seria demais dizer que não sabe. E mente para
si, ao fazê-lo, por que não é capaz de suportar a verdade, não é capaz de
rememorar o trauma!
O curioso
é que o que nos traumatiza não é algo desagradável que ocorreu conosco, mas
algo mais agradável do que estamos dispostos a aceitar. Assim, usando um
exemplo brutal, não faz sintoma alguém que sofreu um abuso sexual a menos que
disso tenha obtido algum prazer.
Lembremos
que o sintoma, em psicanálise, é sempre a expressão de um desejo. Verdade que precisa
ser expressa virtualmente encoberta em uma mentira. E como responde o
psicanalista à mentira do eu? Com a verdade do sujeito, está aí o caminho da
interpretação.
A
interpretação, em lacanês, não se trata de desvendar um sentido oculto,
pré-estabelecido em símbolos que aparecem, como se já houvesse um significado
por trás desse símbolo anteriormente à sua produção. Trata-se da enunciação da
verdade do sujeito presente na articulação de suas cadeias significantes. Não
cabe a um analista dizer qual é o sentido de um sintoma de um sujeito, cabe
apenas enunciar, como um eco de quem fala, aquilo que verdadeiramente diz. É na
intenção de desfazer um sentido construído e inquestionado no sintoma que o
analista faz essas falas esquisitas e fantasmagóricas. Colocar o sujeito em
frente ao abismo de seu sentido, a partir daí é o próprio sujeito quem deve
escolher se atravessa o abismo e produz outra coisa que não mais precise
daquele sentido sintomático que houvera construído.
O sujeito
constrói seu sintoma para proteger-se do insuportável de seu desejo. A análise
é capaz apenas de oferecer um encontro com aquilo que foi necessário esconder
de mim mesmo.
Mas porque
isso seria interessante? Ora, porque eu nunca fui capaz de viver sem isso que
escondo de mim, chegando a criar esses castelos fantásticos para viver meu
desejo. Sem isso que escondo, em suma, não existo e a questão é: preciso de uma
metáfora para escrever minha marca real às experiências que pretendo viver?
Sem esse
incômodo, não é aconselhável procurar uma análise...
Caro Milton,
ResponderExcluirParece-me que a mentira é constitucional do homem e, portanto, da cultura e sociedade. Em "A Negação da Morte" Ernest Becker sustenta o conceito da mentira caracterológica, um pouco na linha freudiana sobre a imprescindibilidade da repressão.
Aliás, o próprio modelo de mente pensado por Freud tem na mentira um articulador central. Pense ficcionalmente em uma situação a la "O Mentiroso" (aquele filme com o Jim Carey. Um dia sem poder mentir e o mundo certamente se encontraria com um apocalipse real.
A mentira é, portanto, condição de possibilidade de existência e coexistência humana.
Gostei do texto.