quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
Sobre o mecanismo psíquico dos camundongos
*Texto de Milton Nuevo Neto: psicólogo amigo do Poiésis.
No dia 05 de Janeiro do ano do fim do mundo, o jornal O Estado de S. Paulo publicou uma matéria, no caderno Vida, de Fernando Reinach intitulada “Como apagar memórias sem deixar traços”. Deixando de lado algumas ironias e diversos chistes possíveis, a matéria trata da divulgação dos resultados de mais uma pesquisa sobre os medicamentos antidepressivos baseados na inibição seletiva da recaptação de serotonina – os medicamentos da era Prozac!
A pesquisa foi realizada em laboratório com camundongos e se destinava a provar que a Fluoxetina (Prozac) é capaz de “apagar traumas”. Trata-se do seguinte: submeteram alguns pobres ratinhos ao dispositivo conhecido como “caixa de Skinner”, para condicioná-los a sentir medo de um determinado som (uma buzina). Para o condicionamento foram associados choques elétricos disparados junto às buzinadas. Após pouco tempo, não é necessário ser cientista do comportamento para saber que os camundongos respondiam com grande susto à buzina.
Depois fizeram testes em dois grupos de camundongos, um em uso de Fluoxetina e outro sem. O verificado foi que o grupo drogado perdia o condicionamento com grande rapidez, não sofrendo estímulo diante da exposição à buzina, ao contrário do grupo sadio que continuava aterrorizado.
Com isso a conclusão brilhante foi de que a fluoxetina é capaz de apagar traços de memória do trauma!!!
Gostaria de tecer algumas críticas, não a essa pesquisa somente, mas à inconsistência da lógica biomédica como um todo e, principalmente, à direção ética de tal modelo. Por último, pretendo sugerir outra leitura dos resultados da mesma pesquisa, afinal, todo esse trabalho pode ser aproveitado de forma que os pobres ratinhos não tenham sido eletrocutados e drogados em vão.
De início, penso na idéia de trauma. Esse termo foi cunhado por Freud pela primeira vez fazendo referência à semiologia concernente aos transtornos mentais – antes era um termo médico que designava um choque mecânico – em um texto pré-psicanalítico intitulado “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos”. Nesse texto, Freud e, seu então professor, Breuer, usam o termo trauma para designar um fenômeno que pode ser entendido como um choque psíquico. A idéia ficou tão famosa que hoje Trauma é uma palavra cotidiana que designa aquilo que Freud determinou e a medicina acabou tendo que substituir o termo por traumatismo para evitar confusões quando alguém bate a cabeça, por exemplo.
Essa pequena anedota do mundo da ciência é só para propor uma questão: não é o mesmo método científico empirista, responsável pelo rigor de operar com grupo controle (e tudo e tal) para “provar” seus resultados, que acusa o método psicanalítico de ser inválido cientificamente? Qual é a justificativa, então, para utilizar sem cuidado um conceito notadamente psicanalítico como base de argumentação?
Além disso, a psicanálise também tem grande rigor e preocupação em suas formulações e existem pressupostos para que se possa assumir a idéia de trauma. A psicanálise trata (ou funda) um sujeito do inconsciente. Tal sujeito, é Lacan e não Freud quem vai dizer, é dependente da linguagem para se constituir. Portanto a única possibilidade de se fazer emergir um sujeito é no humano. Nunca havia imaginado um rato passando pelo Complexo de Édipo, outro conceito psicanalítico diretamente relacionado ao Trauma. Fico pensando se seria demais remontar o que é Memória e Sofrimento Psíquico para a Psicanálise, para não dizer de algumas correntes da Psicologia, ou da Psiquiatria.
Enfim, não será necessário dessa vez. Basta colocar uma coisa sobre o trauma. Freud percebeu na clínica que o trauma – analisado por meio da fala de seus pacientes – é uma experiência psíquica e não tem relação com a realidade. Isso significa que os abusos sofridos na infância pelas histéricas, fator causal de seus sintomas, não necessariamente aconteceu (pelo menos não da forma que elas contam), mas são contados pelo crivo do sujeito, que mostra como eles foram simbolizados. E é essa simbolização a responsável pelo sintoma do paciente. Ah sim, mais uma coisa importante: o sintoma em psicanálise não se trata de um sinal de desajustamento ao funcionamento normal, mas de uma formação de compromisso entre as instâncias do aparelho psíquico (id, ego e superego) que conferem um lugar simbólico ao sujeito da fala. Lugar este que é perseguido pelo sujeito em sua fantasia e que o confina em uma compulsão à repetição. O sujeito repete a cena traumática pela via do desejo!
Claro, não é necessário assumir que a psicanálise esta certa, mas o fato é que eu já vi na clínica (minha clínica) uma fobia ser dissolvida mediante a consciência que um sujeito tomou, por meio de sua fala, dos motivos inconscientes que a sustentavam. Nunca vi alguém deixar de ser fóbico tomando Fluoxetina. Por fobia, me refiro à idéia velada na pesquisa em questão, de que os ratos sustentavam um medo da buzina por conta do choque elétrico, ou seja, o medo infundado de algo que não está lá. Então quer dizer que a fobia de um humano falante pode ser entendida no mesmo grau de complexidade da resposta reflexa condicionada de um camundongo?
Bom, agora desejo fazer uma leitura própria dos resultados. É claro que é apenas metafórica, pois não posso imaginar uma relação tão estreita entre o que vou dizer sobre camundongos no que diz respeito aos humanos.
Em primeiro, o resultado da pesquisa mostra que posso assumir com segurança que drogas psicoativas podem ocasionar o apagamento de memórias e impedir que as pessoas guardem registros de experiência. Não imagino porque isso seria interessante para uma ciência que tem como função ajudar, mas fico a pensar em outra coisa: os dependentes químicos na cracolândia querem esquecer o que? A miséria sócio-econômica, ou o Choque (aquele fardado)?
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