No dia 23/06 do ano do fim do mundo, a Folha de São Paulo divulgou a grata notícia cujo título merece referência direta: “Médicos devem saber como seus pacientes pensam” – dizem professores da Harvard. Em primeira instância, chama a atenção o peso que recai em nossos ombros pensar em colocar divergências aos professores da Harvard, imaginada imaginariamente – felicitações a Lacan – como um Olimpo da ciência.
A matéria trata do lançamento de um livro chamado “Your Medical Mind” dos médicos americanos Jerome Groopman e Pamela Hartzband, cujo tema aborda a não adesão de pacientes a determinados medicamentos ou tratamentos. Dessa forma o casal propõe que se reconheçam os perfis de mentalidade dos pacientes, para melhorar sua comunicação – chegam, então, às categorias de pacientes: Naturalista, Tecnológico, Desconfiado, Confiante, Minimalista e Maximalista. Deixando de lado, pelo momento, o mal-entendido quando pensamos na questão da comunicação, o mais importante nos parece ser a tentativa de classificação para os perfis de pacientes. Quase como uma nova psicopatologia imediatista que pretende determinar as maneiras errantes do paciente na sua relação com o médico.
Quase, doutores! Chegaram à ideia de que existe um problema que se refere à relação do paciente com vocês, mas infelizmente essa ideia já foi discutida há mais ou menos... vejamos... 100 anos atrás.
Deixemos a crítica aos leitores, bem como a introdução de um termo tão caro à psicanálise quanto a precisão o é para um cirurgião. Freud, em 1912, fez sua “Recomendação aos médicos que exercem a psicanálise”. Nesta, ele retoma uma ideia simples, no entanto, não tão óbvia. Nas palavras de Lacan, enquanto conversava com alguns médicos:
“Quando o doente é encaminhado ao médico, ou quando ele o aborda, não digam que pura e simplesmente ele espera do médico a cura. Ele desafia o médico a tirá-lo de sua condição de doente, coisa bem diferente, pois isso pode implicar que ele está atraído pela idéia de conservá-la. Às vezes, ele nos procura para pedir sua autenticação de doente, em muitos outros casos ele vem, de modo manifesto, pedir que o preserve em sua doença, tratando-a da maneira para ele mais conveniente, que lhe permita continuar sendo um doente bem instalado em sua doença.”
Antes de entrar nos pormenores do que isso implica, cabe uma ressalva. Dando crédito ao esforço feito na pesquisa citada, fica a pergunta: Doutores, vocês definiram o tipo do paciente que está na sua frente, agora pretendem operar sobre isso?... isso?... operar sobre o isso ... Fica a dica.
Não nos cabe especular a motivação que levou os pesquisadores ao título do livro, contudo, nos chama muita atenção a categorização de como o titulo se impõe: Médicos DEVEM saber o que seus pacientes pensam. Vocês já experimentaram perguntar? Ah claro! Isso implicaria assumir que vocês não sabem. E de fato, não sabemos nada sobre o outro, a não ser que ele fale. Se ele fala, no entanto, pode mentir! Grave problema quando estamos tratando da verdade. Aliás, de qual verdade estávamos falando mesmo? A verdade de que a medicina DEVE saber, ao contrário do paciente que não é esclarecido quanto ao seu mal-estar. Perigoso caminho. A verdade deve advir, mas não do médico.
Se criarmos esses horóscopos que tem tanto desejo de enquadrar o paciente em uma verdade, perderemos todo o encanto de descobrir a verdade à qual o paciente pode chegar em uma análise. Já não bastava toda a sessão de transtornos de personalidade no CID 10? Precisamos de mais horóscopos alienantes?
Bem, voltando à questão, a recomendação de Freud aos médicos poderia ser resumida a uma única coisa, algo como: estejam atentos à transferência!
Claro, não queremos ser spoilers, portanto, nos cabe contar do que se trata a transferência e de como se opera sobre ela, afinal vocês chegaram tão perto que também queremos ver como a trama termina. Vejamos o que vocês conseguem enquanto continuam a ignorar Freud e brincar de astrólogos.
Terminamos essa breve brincadeira, e como toda boa brincadeira tem um fundo de VERDADE... (mas aí já são foucaultros quinhentos) com a humilde contribuição de um casal que não sabe nada da vida a um casal do (não) suposto Olimpo do saber. (ah, essa vai para os psicanalistas de plantão).
Autores do texto:
Milton Nuevo de Campos Neto (miltonnuevo.psi@gmail.com)
Raonna Caroline Ronchi Martins (raonnacrm@gmail.com)
Já não basta que reivindiquem toda a verdade da doença, agora querem patologizar a não-adesão ao tratamento?
ResponderExcluirO próximo passo será receitar uma pílula do tipo protetor estomacal (quando se prescreve antibióticos), mas na versão "paciente não-aderente". "Aqui, tome esta pílula sempre antes de tomar a medicação para evitar os efeitos colaterais da adesão ao tratamento"...