Gostaria de fazer uma leitura de alguns pontos cruciais (para mim) da trilogia “Matrix”. A ideia me ocorreu por se tratar de uma expressão muito forte da minha geração e por apresentar elementos ilustrativos bastante úteis para uma discussão sobre a sociedade de controle proposta por Deleuze. Pretendo, para isso, passar pela sociedade disciplinar, pelo biopoder, a biopolítica e a política do sintoma.
Não pretendo me aprofundar em explicações teóricas complexas, mas apenas apresentar alguns pontos para uma leitura da trilogia Matrix. Espero que o texto seja divertido.
Foucault se preocupou, em sua ultima fase, com a temática da vida e, com isso, chegou a uma questão importantíssima: o governo. Do que se trata o governo e o que faz dele algo tão importante? O governo é uma forma específica de dar conta de um problema muito específico que é a população. A tentativa é de dar conta do controle, do exercício de poder sobre uma população. E a forma mais eficaz, aparentemente, é por meio do direito. O que opera na mudança do modelo social presente na era medieval para a moderna, seria uma alteração no entendimento do ato infracional: se na primeira o critério para a caracterização de um ato infracional era a Lei Divina, ou a Lei Monárquica, na segunda a infração se daria contra uma nova lei. Não havendo mais a necessidade de se reportar ao divino para a regulação social, só se poderia cometer uma infração contra o próprio pacto social.
Isso gera, ao mesmo tempo, uma preocupação com os aspectos subjetivos do infrator (quanto à sua motivação) e um interesse na possibilidade de profilaxia do crime. Surge então o dispositivo mais importante de nossa sociedade disciplinar: a polícia. Sem me alongar na explicação e deixando buracos em aberto pelo caminho, passemos para o novo objeto de disciplinarização, ou seja, o corpo. É no corpo que se encerra a vida, nesse entendimento, e deve ser esse mesmo o objeto sob o qual incidirá o poder. Foucault chega ao Biopoder. Poder que passa a ser exercido de modo oculto quando a instituição jurídica/prisional, oculta a verticalidade de seu poder na horizontalidade das estratégias de controle que passa a criar. Cria instituições paralelas que devem regular a vida: além do presídio, a escola, o hospital, a clínica, entre outras. Para que um sujeito possa pertencer à sociedade, deve estar vinculado a um (ou vários) desses domínios.
Começa a saga da matrix. O modo de gerir grande número de corpos ao mesmo tempo é o que designa a Biopolítica enquanto estratégia. Biopoder exercido sobre a população. Assim o governo não mais precisa excluir corpos, ele pode incluí-los em novos domínios. “Excluir para dentro” regulando sua produção sem que pare de produzir. Algo como: você é louco então não poder participar de determinados domínios, deve ficar nesse do manicômio (ou dos CAPS?); você que é criança, vá para a escola; você que é doente, para o hospital; você que é “normal”, vá trabalhar.
Deleuze, um pouco mais adiante, vai dizer que em nossa sociedade contemporânea (pós-moderna) não há mais necessidade de disciplinarização dos corpos, eles já estão sob controle porque nasceram já em um mundo disciplinado. Isso faz com que os próprios corpos sejam agentes de controle em potencial. O poder já se exerce de forma imanente nos sujeitos.
Difícil? Mais ou menos... Pense no primeiro filme da trilogia e considere os agentes, aqueles homens maus vestidos de preto que podem tomar emprestado o corpo de qualquer um. Essa é uma das primeiras lições de Morpheus a Neo em seu treinamento: são todos o inimigo!
Assim vivemos. Somos criados em um mundo onde determinadas formas de linguagem e interação produzem nossa subjetividade. Muita viagem? Então faça um experimento: converse por uma hora com uma criança de 11 anos e peça pra ela lhe contar sobre o que gosta de fazer, como é seu cotidiano, etc... e verá um verdadeiro ciborgue! Alguém parte homem, parte máquina. Não raro ele irá sacar da mochila o tablete, ou Ipod, smartphone, para continuar a conversa lhe mostrando a si mesmo no facebook, seus arquivos, seus amigos. Se prestar bem atenção verá que é mesmo quase como se a mente dele fosse estendida com auxílio de HD externo! O que? Não é só o garoto de 11 anos que faz isso? Você com 40 também? Bem...
Quais seriam os programas que rodam nessa nova consciência? Deleuze e Guattari falam sobre os microfascismos. Não são vistas revoluções por que a maneira de pensar do revolucionário está contaminada com o vírus Smith!
Continuando a saga, há, claro, Neo. A questão que se coloca é como foi possível que Neo chegasse a destruir o vírus Smith. Aqui, inclusive devemos fazer uma distinção importante (sinto como se desse pra escrever por toda a vida caso separemos todos os elementos dessa trilogia): o vírus Smith não é a Matrix. Smith é, no entanto, uma de suas crias mais puras. Acredito que a esse ponto já esteja claro que eu estou fazendo uma analogia da Matrix com uma forma de governo biopolítica. Mas caso não esteja claro, a Matrix mantém corpos produzidos por reprodução in vitro, que passam a viver em tonéis, submersos no que poderíamos chamar de fluido puro da pulsão, gerando energia por meio de sua libido. É isso que a Matrix controla: o desejo. É por isso que ela precisa de corpos, porque máquinas não produzem desejo e não há essa energia que as alimenta (mesmo que depois de transformada em energia elétrica ou BTUs) nelas mesmas. Precisam dos corpos humanos.
É aqui que se faz precisa a forma pela qual a biopolítica é, ao mesmo tempo, modo de controle e possibilidade de resistência. Na medida em que as máquinas precisam de nós e que está pronto o jogo onde viramos uma boa moeda de troca! Nossas ações estão em alta na bolsa! É por precisar de nós que a sociedade de controle pode ser tomada (seria a tentativa de Foucault e Deleuze para oferecer saída de seu pessimismo apocalíptico).
É exatamente com isso que operam aqueles poucos humanos que escaparam da Matrix. No entanto, esses poucos, não geram mais energia para as máquinas e podem ser caçados por elas. Mas se todos acordassem, no mínimo as máquinas precisariam negociar. Estamos em hollywood e é claro que existe um herói salvador que por meio de uma lógica individualista vai salvar aos outros, substituindo a potência de todo um coletivo humano por um único exemplar fálico, mas vamos usar Neo como metáfora só para não perder a graça.
Qual foi o processo de escape operado por Neo? Daqui pra frente pretendo ser supersônico perdendo detalhes, pois não tenho muitas linhas e você não tem muito tempo. Neo teve dois encontros importantes para sua libertação: o oráculo e o arquiteto. Como se já não bastasse a referência a Foucault, Deleuze e Guattari, vamos trazer Lacan. Poderíamos olhar para o oráculo e o arquiteto como personificação de dois discursos, pela ordem: o discurso do analista e o da universidade. O discurso da universidade operado pelo arquiteto é aquele que agindo do seu saber sobre as probabilidades de ação de Neo, o coloca no lugar de objeto de sua suprema inteligência que pode predizer tudo aquilo que Neo fará. Com isso oculta sob si um lugar de mestre que produz em Neo um sujeito, assujeitado.
Mas Neo não cai na roubada. Escapa dela subvertendo todas as regras do jogo. Eu também faria isso se soubesse voar, parar balas com a mente, etc. Mas ele não aprendeu tudo isso do nada, precisou antes passar pelo oráculo. Antes do oráculo, Neo era só um corpo vulnerável ao vírus Smith. E a senhora gentil e enigmática só se colocou em frente a Neo como o objeto de seu desejo, permitindo a transferência que fazia Neo tê-la como o Outro do saber. Velando um saber, a senhorinha fez com que Neo pudesse produzir um significante mestre... One (o escolhido). Não respondendo do lugar do Outro que diria a ele que é o escolhido, surpreendeu-lhe respondendo justamente o contrário. Neo escolhe atravessar o sintoma e se responsabilizar pela falta. “Não sou o escolhido, mas vou salvar Morpheus mesmo assim”.
No meio do caminho ele descobre novas formas de agir, agora que não está mais preocupado em ser o escolhido, pode operar de fora do sintoma que o afirma escolhido pela falha disso (ao molde da interpretação dos sonhos) e, na briga com o agente Smith no metro ele encontra um novo significante: Neo. A partir desse novo objeto que é ele próprio, pode voar, parar balas e o que mais precisar.
Pode então enfrentar o arquiteto e exercer sua liberdade pela recusa do destino. Não é por poder fazer o que quiser dentro da Matrix que Neo é livre, mas por não precisar fazer o que Matrix determina que ele faça.
Assim passa a poder fazer façanhas mesmo fora da Matrix e vai até a cidade das máquinas. A essa altura, Matrix produziu seu próprio fim: o vírus Smith. Tal fim que é justamente a torção do discurso do mestre, fazendo com que o objeto não caia, mas permaneça operando o gozo.
O trato que Neo faz com a Matrix é: você perde o jogo se permitir que Smith tome tudo, eu perco todas as vidas inseridas na Matrix se isso acontecer, então a proposta é que eu me conecte a partir de você e, assim, quando Smith me contaminar, você poder acessá-lo por meio de meus códigos e impedi-lo. A única condição é que os humanos tenham outra chance.
Essa seria uma forma viável de biopolítica? Seria possível alcançar, por meio de uma política do sintoma (sinthome), a subversão do discurso do capital?
Autor do texto:
Milton Nuevo de Campos Neto (miltonnuevo.psi@gmail.com)
sábado, 14 de julho de 2012
Da não adesão ao tratamento à não adesão do inconsciente.
No dia 23/06 do ano do fim do mundo, a Folha de São Paulo divulgou a grata notícia cujo título merece referência direta: “Médicos devem saber como seus pacientes pensam” – dizem professores da Harvard. Em primeira instância, chama a atenção o peso que recai em nossos ombros pensar em colocar divergências aos professores da Harvard, imaginada imaginariamente – felicitações a Lacan – como um Olimpo da ciência.
A matéria trata do lançamento de um livro chamado “Your Medical Mind” dos médicos americanos Jerome Groopman e Pamela Hartzband, cujo tema aborda a não adesão de pacientes a determinados medicamentos ou tratamentos. Dessa forma o casal propõe que se reconheçam os perfis de mentalidade dos pacientes, para melhorar sua comunicação – chegam, então, às categorias de pacientes: Naturalista, Tecnológico, Desconfiado, Confiante, Minimalista e Maximalista. Deixando de lado, pelo momento, o mal-entendido quando pensamos na questão da comunicação, o mais importante nos parece ser a tentativa de classificação para os perfis de pacientes. Quase como uma nova psicopatologia imediatista que pretende determinar as maneiras errantes do paciente na sua relação com o médico.
Quase, doutores! Chegaram à ideia de que existe um problema que se refere à relação do paciente com vocês, mas infelizmente essa ideia já foi discutida há mais ou menos... vejamos... 100 anos atrás.
Deixemos a crítica aos leitores, bem como a introdução de um termo tão caro à psicanálise quanto a precisão o é para um cirurgião. Freud, em 1912, fez sua “Recomendação aos médicos que exercem a psicanálise”. Nesta, ele retoma uma ideia simples, no entanto, não tão óbvia. Nas palavras de Lacan, enquanto conversava com alguns médicos:
“Quando o doente é encaminhado ao médico, ou quando ele o aborda, não digam que pura e simplesmente ele espera do médico a cura. Ele desafia o médico a tirá-lo de sua condição de doente, coisa bem diferente, pois isso pode implicar que ele está atraído pela idéia de conservá-la. Às vezes, ele nos procura para pedir sua autenticação de doente, em muitos outros casos ele vem, de modo manifesto, pedir que o preserve em sua doença, tratando-a da maneira para ele mais conveniente, que lhe permita continuar sendo um doente bem instalado em sua doença.”
Antes de entrar nos pormenores do que isso implica, cabe uma ressalva. Dando crédito ao esforço feito na pesquisa citada, fica a pergunta: Doutores, vocês definiram o tipo do paciente que está na sua frente, agora pretendem operar sobre isso?... isso?... operar sobre o isso ... Fica a dica.
Não nos cabe especular a motivação que levou os pesquisadores ao título do livro, contudo, nos chama muita atenção a categorização de como o titulo se impõe: Médicos DEVEM saber o que seus pacientes pensam. Vocês já experimentaram perguntar? Ah claro! Isso implicaria assumir que vocês não sabem. E de fato, não sabemos nada sobre o outro, a não ser que ele fale. Se ele fala, no entanto, pode mentir! Grave problema quando estamos tratando da verdade. Aliás, de qual verdade estávamos falando mesmo? A verdade de que a medicina DEVE saber, ao contrário do paciente que não é esclarecido quanto ao seu mal-estar. Perigoso caminho. A verdade deve advir, mas não do médico.
Se criarmos esses horóscopos que tem tanto desejo de enquadrar o paciente em uma verdade, perderemos todo o encanto de descobrir a verdade à qual o paciente pode chegar em uma análise. Já não bastava toda a sessão de transtornos de personalidade no CID 10? Precisamos de mais horóscopos alienantes?
Bem, voltando à questão, a recomendação de Freud aos médicos poderia ser resumida a uma única coisa, algo como: estejam atentos à transferência!
Claro, não queremos ser spoilers, portanto, nos cabe contar do que se trata a transferência e de como se opera sobre ela, afinal vocês chegaram tão perto que também queremos ver como a trama termina. Vejamos o que vocês conseguem enquanto continuam a ignorar Freud e brincar de astrólogos.
Terminamos essa breve brincadeira, e como toda boa brincadeira tem um fundo de VERDADE... (mas aí já são foucaultros quinhentos) com a humilde contribuição de um casal que não sabe nada da vida a um casal do (não) suposto Olimpo do saber. (ah, essa vai para os psicanalistas de plantão).
Autores do texto:
Milton Nuevo de Campos Neto (miltonnuevo.psi@gmail.com)
Raonna Caroline Ronchi Martins (raonnacrm@gmail.com)
A matéria trata do lançamento de um livro chamado “Your Medical Mind” dos médicos americanos Jerome Groopman e Pamela Hartzband, cujo tema aborda a não adesão de pacientes a determinados medicamentos ou tratamentos. Dessa forma o casal propõe que se reconheçam os perfis de mentalidade dos pacientes, para melhorar sua comunicação – chegam, então, às categorias de pacientes: Naturalista, Tecnológico, Desconfiado, Confiante, Minimalista e Maximalista. Deixando de lado, pelo momento, o mal-entendido quando pensamos na questão da comunicação, o mais importante nos parece ser a tentativa de classificação para os perfis de pacientes. Quase como uma nova psicopatologia imediatista que pretende determinar as maneiras errantes do paciente na sua relação com o médico.
Quase, doutores! Chegaram à ideia de que existe um problema que se refere à relação do paciente com vocês, mas infelizmente essa ideia já foi discutida há mais ou menos... vejamos... 100 anos atrás.
Deixemos a crítica aos leitores, bem como a introdução de um termo tão caro à psicanálise quanto a precisão o é para um cirurgião. Freud, em 1912, fez sua “Recomendação aos médicos que exercem a psicanálise”. Nesta, ele retoma uma ideia simples, no entanto, não tão óbvia. Nas palavras de Lacan, enquanto conversava com alguns médicos:
“Quando o doente é encaminhado ao médico, ou quando ele o aborda, não digam que pura e simplesmente ele espera do médico a cura. Ele desafia o médico a tirá-lo de sua condição de doente, coisa bem diferente, pois isso pode implicar que ele está atraído pela idéia de conservá-la. Às vezes, ele nos procura para pedir sua autenticação de doente, em muitos outros casos ele vem, de modo manifesto, pedir que o preserve em sua doença, tratando-a da maneira para ele mais conveniente, que lhe permita continuar sendo um doente bem instalado em sua doença.”
Antes de entrar nos pormenores do que isso implica, cabe uma ressalva. Dando crédito ao esforço feito na pesquisa citada, fica a pergunta: Doutores, vocês definiram o tipo do paciente que está na sua frente, agora pretendem operar sobre isso?... isso?... operar sobre o isso ... Fica a dica.
Não nos cabe especular a motivação que levou os pesquisadores ao título do livro, contudo, nos chama muita atenção a categorização de como o titulo se impõe: Médicos DEVEM saber o que seus pacientes pensam. Vocês já experimentaram perguntar? Ah claro! Isso implicaria assumir que vocês não sabem. E de fato, não sabemos nada sobre o outro, a não ser que ele fale. Se ele fala, no entanto, pode mentir! Grave problema quando estamos tratando da verdade. Aliás, de qual verdade estávamos falando mesmo? A verdade de que a medicina DEVE saber, ao contrário do paciente que não é esclarecido quanto ao seu mal-estar. Perigoso caminho. A verdade deve advir, mas não do médico.
Se criarmos esses horóscopos que tem tanto desejo de enquadrar o paciente em uma verdade, perderemos todo o encanto de descobrir a verdade à qual o paciente pode chegar em uma análise. Já não bastava toda a sessão de transtornos de personalidade no CID 10? Precisamos de mais horóscopos alienantes?
Bem, voltando à questão, a recomendação de Freud aos médicos poderia ser resumida a uma única coisa, algo como: estejam atentos à transferência!
Claro, não queremos ser spoilers, portanto, nos cabe contar do que se trata a transferência e de como se opera sobre ela, afinal vocês chegaram tão perto que também queremos ver como a trama termina. Vejamos o que vocês conseguem enquanto continuam a ignorar Freud e brincar de astrólogos.
Terminamos essa breve brincadeira, e como toda boa brincadeira tem um fundo de VERDADE... (mas aí já são foucaultros quinhentos) com a humilde contribuição de um casal que não sabe nada da vida a um casal do (não) suposto Olimpo do saber. (ah, essa vai para os psicanalistas de plantão).
Autores do texto:
Milton Nuevo de Campos Neto (miltonnuevo.psi@gmail.com)
Raonna Caroline Ronchi Martins (raonnacrm@gmail.com)
Assinar:
Postagens (Atom)