quarta-feira, 20 de junho de 2012

Virtualidade dos tempos atuais

O dia cheio transbordou em compromissos, os olhos pesaram- o dia acabou e o trabalho consumiu todas as horas.

O dia passou sem muita outra percepção além das milhões de notícias da internet rodadas ao mesmo tempo na tela do computador, das planilhas obrigatórias e infindáveis do trabalho que quase não permitiram o almoço, das conversas virtuais e rápidas feitas com “amigos”, vistos em imagens do site de relacionamento, que mostraram um bem-estar registrado com urgência. A televisão no fim do dia serviu como anestésico.

Os dias passavam assim. O tempo corria sem muito se ver. O que era visto, era via redes virtuais.

Marca da sociedade moderna e globalizada, estar conectado 24 horas, ligado a tudo, diz respeito a virtualidade dos tempos atuais que tem tomado mais espaço que encontros reais- tem-se estado acompanhado dessa forma. Afinal, para quê se dispor de encontros que toma tempo (tempo é dinheiro!) e ter a possibilidade de conhecer alguém de perto se em sites de relacionamento catálogos de pessoas com suas características mais exuberantes podem ser analisadas e ainda melhor, descartadas? Diz respeito a relações frágeis e flexíveis, sem vínculo, que seguem a lógica do consumismo: escolhem-se pessoas ali, como um produto, que pode ser consumido e descartado. E amanha é dia de trabalho, alguns amigos novos adicionados, mas não que eu tenha visto de perto, nem mesmo os encontrei. O dia passou de novo sem que eu tivesse encontros. E quanto aquele namoro curto e de difícil diálogo, deletei, sem mesmo conversar sobre as indisposições e falhas que ele me trazia. Não tinha tempo pra pensar, atrapalhava meu dia cheio.

Bauman, em “Amor líquido” destaca a fragilidade dos vínculos humanos atuais. Fala sobre os desejos conflitantes de apertar e ao mesmo tempo manter os laços frouxos, da dificuldade de manter compromissos- condição que pode trazer encargos e tensões que não se esta apto nem disposto a suportar e que podem limitar a liberdade que tanto as pessoas se acham merecedoras. Conta que no liquido cenário da vida moderna, o sonho e o pesadelo de relacionar-se são sentidos da ambivalência e que o relacionamento de bolso, aquele pode se dispor quando necessário, tem sido preferência. Põe em questão se a sociedade moderna anseia pela procura de relacionamentos duradouros ou se o desejo é voltado para relações frouxas e leves para que possam ser postas de lado a qualquer momento.
Livro dedicado aos riscos e ansiedades de se viver junto e separado, no líquido mundo moderno em que a procura vai em direção ao encontro de alguém ideal. Lembra que estar conectado é menos custoso do que estar engajado e menos produtivo em termos da construção e manutenção de vínculos e compara a velocidade com que uma pessoa é trocada por outra; relações começam e terminam na mesma intensidade, numa frenética substituição, já que ‘liberdade’ é opção mais fácil frente a possibilidade de se vincular a alguém.

E nesses tempos de imediatismos e necessidade de garantia, sobra tempo para o amor? Para encontros efetivos? Tempos de discursos da lógica de mercado que vendem objetos oferecidos para saciedade, em que os laços sociais têm sido mediados quase que prioritariamente pela mídia virtual, sobra o quê?

Transborda narcisismo nessa nossa cultura de imagem, nessa busca por dinheiro e status social e só. Disse Antonio Candido “ o capitalismo é o senhor do tempo. Mas tempo não é dinheiro, isso é uma brutalidade. Tempo é o tecido de nossas vidas”.
O homem perde tempo.

Livia Lemos.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Roupa Suja



Gosto muito de provérbios populares, especialmente pelos diferentes sentidos que podemos encontrar em seus enunciados. O título deste texto sugere o clássico roupa suja se lava em casa. Pois bem, é deste que vou falar.

Em geral quando usamos este provérbio, queremos não tornar públicas certas rusgas e ressentimentos, que tem uma origem sabidamente doméstica, familiar. Problema: a rusga ou o ressentimento presentes em mim não irá simplesmente desaparecer sem que eu faça algo. Normalmente, as famílias não estão preparadas para servir de espaços de elaboração de traumas, feridas ou sofrimentos psíquicos, portanto caberá a mim elaborar (encontrar resoluções, ou outros destinos para meus impasses) nas relações que eu estabeleço mundo a fora.

Assim, terei a oportunidade de elaborar meus traumas na relação conjugal, na relação profissional, com os amigos ou mesmo com estranhos. Contudo, há uma repetição. Em todas estas relações, há a enunciação roupa suja se lava em casa. Ou seja, a mesma tentativa de não tornar publico aquilo que, em geral, arranha uma certa autoimagem que gostaríamos de preservar.

Pois bem, exatamente por ser uma dupla constante, tanto o desfecho quanto o destino que as rusgas sempre encontram na experiência privativa o seu cárcere, ou a sua verdadeira casa. Quando dizemos que roupa suja se lava em casa, o que está sendo dito, na verdade, é que aquilo que não tem espaço em uma relação deve ser reprimido naquele que ousa torná-la pública.

Na clínica psicológica (independente da orientação) o que vemos é um empobrecimento de algo precioso: a qualidade da experiência. Quando não há convite (abertura) para o compartilhamento daquilo que nos intoxica, ocorre o que chamamos de formação reativa. Ou seja, criamos um destino outro para o que, originalmente, deveria ser dirigido para alguém. Assim, chegamos à bela frase de Lacan o neurótico é uma palavra encarnada. Isso porque a experiência nos mostra a escassez de casas predispostas a lavar sua própria roupa.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

“ Quanto ao amor, nada mais discordante. Basta que se esteja nele, basta amar, para ser presa dessa hiância, dessa discórdia” Lacan.

Pode parecer insuportável tolerar a incerteza que um amor traz. Não se trata jamais de completude, mas de ser capaz de suportar a duvida. Aceitar o amor tal como é, em sua estranha dor e alegria, na inquietação que enlouquece e cura, aprendendo com o outro, ensinando.

Essa crença tem perdido a força frente a uma cultura de imediatismo e relações descartáveis em que o amor é posto de lado. Mas amar é uma fé- é preciso acreditar para que ele esteja, e depois disso, saber estar. É ter que aceitar um outro e sua estranheza, acreditar sem exigência de certeza, tampouco garantia de validade. É um acordo de construção. Quando se fala em papéis de homem e mulher e se fala de amor, ganha quem quis saber do que se trata pra não perder tempo. É o homem a cabeça de uma relação. E a mulher o pescoço. Cabe a mulher entender das dores e perdas de cabeça e conduzir. Homens procuram certezas e se enroscam na incerteza que é uma mulher. E a mulher é o amor, capaz de entender do enrosco. Mas trata-se de uma aposta feita por uma coragem nem um pouco egoísta de deixar-se estar. Aí mesmo, nessa hiância, nessa discórdia. Do outro e suas dissonâncias. Obedecer ao amor, sem nele se anular, entendendo que haverá faltas mesmo diante de uma parceria respeitosa, habitadas uma pela outra, sustentadas uma pela outra. Nossos desejos são por vezes egoístas. E o egoísmo é uma força de renuncia diante da fragilidade de ser dois, limita-se a si mesmo, escolhe retirar-se a se dividir, não ter a conquistar, é a escolha frente a ameaça da possibilidade do difícil da entrega. É o contraponto que dói em cada um e que uns preferem não se haver. Como se fosse possível.

Transformar o amor louco em sensato sai fora da repetição covarde da desistência. Nada mais difícil do que saber aceitar, contrário a facilidade de uma paixão, nada mais difícil do que constituir um casal e um espaço de verdade, de confiança, de intimidade, de humor, de amor. Amar é saber recomeçar. É reinvenção. É humildade que faz pulsar um sentimento nobre de que vida partilhada, é vida ganha.

Livia Lemos.